Lilypie Third Birthday tickers

domingo, 17 de junho de 2012

Aniversário


Que estranho ter uma data para nos lembrarmos que mais um ano se passou sem alguém. Que estranho fechar os olhos e lembrar-me do dia em que me disseram que nunca mais veria meu filho. Não há presentes, somente a ausência. Não há parabéns, apenas condolências. As velas que acendo são para rezar. Ao apagá-las, minha esperança parece ir com elas. 
Hoje completo um ano sem te ver, meu filho, mas você está presente em retratos, fotos, filmes, lembranças, cheiros, frases, risadas. Eu não entendo ainda como pode a vida ser assim: de uma hora para outra, deixa de existir, deixa de estar aqui do meu lado. 
Que estranho aniversário é esse? Por um lado, me alivio em saber que com muita força e amparo, consegui completar um ano sem sua presença. Me lembro que não foi fácil passar por seu aniversário, o meu, o Natal, o Ano Novo, o Dia dos Pais, a Páscoa, sempre me perguntando "onde está você?"
Completar esta fase é concluir que a vida tem que continuar, ao menos a minha. É o fim de um ciclo e começo de outro que talvez seja mais brando. Celebro a chance que tenho, a partir de agora, de me dizer que não estou sofrendo tudo pela primeira vez. Será agora mais um dia, mais um aniversário, mais uma data qualquer sem você, embora acredite que não seja tão fácil assim.
Nesta data sofrida, quanta infelicidade, muitos anos devidos! Me devem seus beijos e abraços, seus palavrões, suas peraltices, sua adolescência, sua formatura, seus amores, meus netos. 
Os dias que antecederam esta data foram recheados de angústia. Me vi reconstituindo cada passo dado, cada momento vivido - os últimos sem você. Minha última conversa por telefone contigo enquanto viajava. Você me pediu para comprar uma van. Eu ri e pensei em trazer uma de brinquedo, claro. Você se despediu de mim dizendo: Papai, eu te amo. Eu te amarei sempre, meu filho. Sempre. 
Reviver tudo isso me fez acreditar que eu seria capaz de impedir que tudo isso ocorresse, que tudo não passaria de um sonho, e que eu acordaria te vendo. Mas não aconteceu. Talvez a vida seja este sonho, que um dia me leve e me desperte, te vendo sorrir pra mim.
Hoje estou aqui com meus amigos, parentes, meu amor, todos unidos em pensamento por aqueles que partiram. Sei que querem que a gente esteja bem. Mas como? Foi então que decidi imaginar este momento como um aniversário do outro lado. Em algum lugar, eles devem estar também dizendo "Faz um ano que viemos para o colo de Deus, faz um ano que nascemos aqui neste lugar". Que melhor presente poderei dar a ele que não seja minha força? Que melhor alegria poderei dar que não seja minha serenidade? É o que busco fazer. Ele agora tem um pai. Aqui e lá. Pai, Filho, Espírito Santo, Amém. 

Espiritualmente falando


Ainda não chegamos a um ano do acidente e o tempo me trai a todo momento. Tem horas em que imagino que foi ontem que tudo aconteceu. Em outros momentos, sinto como se isto fosse uma lembrança longínqua. Em ambos os casos, é a tristeza que me assalta. A ansiedade é grande, o coração dispara à toa, uma sensação esquisita de total impotência. 
Nessas horas, um ansiolítico talvez resolvesse. Prefiro rezar. Faço uma oração e converso com Deus, Nossa Senhora e, sim, Gabriel. Porque tem horas em que os amigos não estão por perto, ou apenas não quero incomodá-los. É nessas horas, em que estou sozinho, que descubro meu lado espiritual e sinto que não estou de fato só. 
Minha formação religiosa sempre foi católica e caótica. Quando criança eu deixava minha avó carola de cabelos em pé com minhas perguntas: "Vovó, e se a Virgem Maria estivesse esperando uma filha? Como se chamaria a criança? Ela teria sido crucificada?". Durante anos eu rezava antes de dormir. Uma Ave Maria, um Pai Nosso, pedia proteção aos meus pais e meu irmão. Fui aumentando a lista cada vez mais: tios, primos, avós, amiguinhos, os pais dos amiguinhos, os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo… Também passei a dar um beijo no anjinho da guarda que ficava do lado da cama. Ás vezes, dormia rezando. Acordava no meio da noite sobressaltado e cheio de culpa: Nossa! Onde parei? E recomeçava a rezar. Um belo dia, comecei a achar que tamanho ritual que já me tirava quase 20 minutos da noite estava chegando às raias de TOC (transtorno obsessivo  compulsivo) embora não soubesse o que era isso, mas parei de rezar. Ainda acreditava em Deus, mas não me sentia com a incumbência de rezar. Fiz comunhão e me crismei para agradar minha avó que sonhava com isso. Depois, vivi nove anos com uma mulher judia, convivi também com budistas, islâmicos, tentei entender o taoismo, o protestantismo e aceitei todos dentro de mim como uma manifestação de algo superior, sem optar por nenhum específico.
Estava muito tenso com a separação, e não vivia um bom momento com a minha mulher em 2011. Precisávamos discutir judicialmente um monte de termos para que um juiz determinasse nossos direitos e deveres. Não havíamos chegado a um acordo e o jeito era através de advogados. Cada decisão que um tomava, repercutia na vida do outro e, do meu lado, isto me deixava extremamente angustiado. Ao conhecer minha atual mulher, logo notei que ela, diferente de mim, era bem mais religiosa e espiritualizada. Foi ela quem me ensinou a rezar de novo. Primeiro para pedir ajuda, para me acalmar.  Conforme isto foi acontecendo, também passei a rezar para agradecer. Minha vida, minha profissão, meu recomeçar, minha paixão e principalmente, meu filho.
Por isso o levei à igreja para conhecer a "casa do papai do céu", enquanto o cobria de beijos e dizia o quanto era feliz com aquele pinguinho de gente no meu colo. Rezando, encontrei uma capacidade de ser mais paciente comigo mesmo. Passei a entender melhor o caminho que deveria seguir. Teria de aguardar o desfecho da decisão judicial e esperar que o tempo pudesse curar as feridas que toda separação acarreta. Um dia, ambos reconheceríamos o que fizemos de certo, e errado. Acontece que no meio disso tudo, veio o acidente.
Por vezes penso como teria sido minha vida se não tivesse voltado a ter este encontro espiritual. Por vezes penso que minha atual mulher entrou na minha vida para me devolver esta fé, como se estivesse me preparando para o que enfrentaria. Minha primeira pergunta, logo nos primeiros minutos em que soube que meu filho havia morrido foi a mesma que todos que já passaram por isso fizeram: Por Quê? Mas eu logo entendi que esta resposta jamais encontraria aqui e que não me caberia sofrer por ela. E como já havia trabalhado muito meu lado espiritual sem saber o que esperava pela frente, tive de entender e principalmente aceitar. Resignado, assumi que esta é a minha missão, minha história passa por esta página, não há como pulá-la, apagá-la, rasgá-la em mil pedacinhos. Para continuar a viver, eu tenho que permitir-me contar mais histórias pra minha história.  E é nessas horas em que vejo pessoas que passaram pela mesma dor que eu não seguirem. Empacam, tocam a vida como um disco arranhado. Sofrem por não seguir. E tento ajuda-los pois sinto que eu também poderia ser um deles. Graças a Deus - literalmente - não fui. 
Falo com ele todos os dias. Quando digo falo, eu de fato converso mesmo, em voz alta. Às vezes me pergunto se estou ficando louco, mas na verdade eu acredito que é justamente o contrário. Conversando com Gabriel, eu consigo não enlouquecer. Não falo com ele como se estivesse vivo, mas sim, presente. É uma sutil diferença. Não é um amiguinho imaginário, não é alguém que eu vejo e ninguém não, é apenas alguém que me energiza,  que sinto perto de mim, a ponto de falar e acreditar que ele me ouve. E nesta noite, aconteceu. 
Estava muito cansado, fiquei trabalhando até as 4 e meia quando decidi dormir, mas não sem antes rezar. Uma Ave Maria. Um Pai Nosso. E segui dizendo: "Deus, Pai Todo Poderoso, Nossa Senhora e …" antes que pudesse dizer seu nome, de olhos fechados eu o vi. Eu estava de pé vendo-o um pouco abaixo de minha cintura. Um manto azulado, não azul turqueza, mais escuro sim. Sobre o manto e um capuz, como se usasse uma toalha sobre a cabeça após o banho, eu via apenas seu nariz, bochechas, boca, não os olhos. Era ele, só que mais crescido! Balbuciei: "Gabriel! Você?" E torci para vê-lo, mas foi apenas esta visão que tive. A mais linda. Era ele sem sombra de dúvida. Meu cansaço me permitiu entrar num estado de percepção diferente. E, logo depois, adormeci sorrindo.